Sobre "apropriação cultural" e intolerância

Gilberto Maringoni

O caso extremo de duas mulheres que atacaram uma terceira por conta do uso de um turbante é ao mesmo tempo retrato de estupidez e caricatura dos tempos em que vivemos. A alegação para a violência, nesse caso, é que determinadas pessoas não podem utilizar o que seriam “símbolos” de outras.

Estamos diante de uma das maiores deformações feitas em nome das chamadas "pautas identitárias".

O caso é de um reacionarismo e de uma possessividade atroz. E não se trata de caso isolado. Está se tornando marca de inflexibilidade, com conotações étnico-raciais preocupantes. Há, agora, pela rede um debate no qual “pessoas brancas” não são bem-vindas.

É estarrecedor!

Pausa para respirar.

Historicamente, “raça” como distinção entre indivíduos ou grupos foi apanágio da pior direita, ao longo dos séculos XIX e XX, com as nefastas consequências que conhecemos. A esquerda luta para superar o racismo e preconceitos de toda espécie. Mas não proclama "raça" como métrica de nada.

(A primeira Constituição de um país a explicitamente coibir diferenças raciais e entre mulheres e homens foi a russa, em 1919)

No que toca à “apropriação cultural”, conceito cujo significado desconheço, vale dizer o seguinte.

Bens culturais, em geral, são fruto do esforço de coletividades inteiras. É o caso das grandes invenções da ciência e da arte. As notáveis descobertas do conhecimento sempre foram obra impessoais e abertas à fruição geral.

O DIREITO AUTORAL - Da Antiguidade até o Renascimento não existia obra autoral na arte. Até hoje não se sabe ao certo se Shakespeare era um ou alguns. O Bhagavad Gita, o Popol Vuh, a epopeia de Gilgamesh, os mitos e lendas africanas, indígenas, nórdicas, gaulesas, a literatura de cordel – da Idade Média ao Nordeste brasileiro – e muitas outras manifestações populares são cada vez mais reconhecidos como pontos everestianos da alma humana. O mesmo se dá com algumas obras renascentistas. Bruneleschi não era uma grife toscana, mas um entre tantos daquela região.

A autoria e o direito autoral surgem com o desenvolvimento do capitalismo comercial. O copyright foi tornado propriedade e métrica de valorização da mercadoria fetichizada. É quando surge o mecenas, aquele que patrocina determinado artista para que ele produza para sua nobreza, para seu palácio. É o nhonhô de luxo, com seu talento acorrentado.

O gênio e o o talento ímpar são construções do regime da mercadoria, que impõe valorização diferenciada para o trabalho intelectual.

Um Picasso ou uma Billie Holliday não são produtos do acaso. Que concentração de ações objetivas e subjetivas, que ambiente social e cultural possibilitou o despertar daquele determinado talento individual? Quantos práticos dos pincéis e paletas perambularam por Málaga ou Paris na virada do século XIX para que aparecesse um artista destacado? Quantas cantoras de salões de igrejas vibraram suas cordas vocais para que uma Lady Day emergisse?

GENEROSIDADE ABERTA - Não é à toa que a esquerda revolucionária - aquela que almeja antes de tudo a abolição da propriedade privada - proclamou que as grandes invenções da medicina, da engenharia, da arte militar e de outros tentos da inteligência planetária deveriam ser usufruídos por todos. Quebras de patentes, copylefts etc. são apelos à doação, à entrega e à vida melhor para todos.

A maior distinção da ONU é conferir a um local ou construção a marca de Patrimônio da Humanidade.

Quando Robert Oppenheimer decidiu entregar secretamente os segredos da fissão nuclear aos soviéticos, o fez por saber que sua descoberta não poderia ser unilateral, não deveria ficar comprimida pelos muros do projeto Manhattan, ao final da II Guerra.

Quando o sargento Mikhail Kalashnikov inventou um fuzil leve, montável e desmontável por qualquer um e possível de ser fabricado em oficinas de fundo de quintal, não estava preocupado com a “apropriação cultural” de uma arma-símbolo da libertação dos pobres da África, Ásia e América Central. Seguiu ganhando salário de operário e entregou o fruto de sua engenhosidade à luta contra a opressão colonial e imperial.

Por isso, trata-se de um acinte histórico, social e político qualquer grupo reivindicar para si algum símbolo coletivo, como se seu latifúndio fosse. Com que mandato? Com que direito?

Reproduzem apenas uma das piores marcas do capitalismo predador.

Trata-se abertamente de uma das maiores odes à propriedade privada que vi nos últimos tempos.

Subscribe to receive free email updates: