O processo atual é catártico e não deixará de ser uma purgação do que temos entendido, infelizmente por aqui desde quase sempre, por política.
A política foi deixando aos poucos seus aspectos de nobreza e se convertendo, no país, em uma mistura de interesses e negócios camuflados com pitadas de alguns temperos ideológicos.
Existiram exceções várias, mas estas ocuparam, com o passar dos anos, desde a redemocratização nos anos 80, um espaço cada vez mais diminuto no ambiente político.
A nobreza da política, entendida como instrumento maior de organização da sociedade na direção do aprofundamento da democracia e da busca do bem comum, perdeu-se corrompida pela busca do poder a qualquer preço e do dinheiro para obtê-lo.
Tenho para mim que o grande momento, o ponto de inflexão definitivo, a partir do qual nada mais seria como gostaríamos - após a debacle de Collor, há exatos 24 anos, quando parecia que uma época de restauração emanaria no ambiente político - foi o momento em que Sérgio Motta, operador, controlador e financiador - quase nunca de forma republicana - do PSDB, convenceu Fernando Henrique Cardoso (FHC), seu amigo intimo e presidente da República eleito em 1994, a buscar à reeleição presidencial.
A reeleição para cargos dos executivos - municipais, estaduais e da união - era proibida pela Constituição de 1988. Jamais em um país que buscasse o aprimoramento das instituições seria razoável fazer uma mudança constitucional dessa proporção beneficiando os que estavam no poder e tinham jurado respeitar a Constituição. Esta, de forma explicita, lhes negava a possibilidade de recondução.
Mas era Sergio Motta. O trator. Poucos escrúpulos, muita sede de poder, uma vontade indomável. Convenceu seu "protégé", vaidoso e enebriado com o poder, adulado por uma corte de puxa-sacos, que dele, FHC, dependia o projeto PSDB 20 anos no poder. Acompanhei de perto, não tão de perto a ponto de ser confundido como da turma, mas nem tão distante a ponto de perder o (sic) espetáculo.
A aprovação da emenda da reeleição, em 1997, em beneficio de FHC, era evidentemente um passo decisivo para barrar a ascensão ao Planalto de Lula e do PT e para jogar para a frente a disputa entre os tucanos e o PFL pela hegemonia na aliança de governo, o que ameaçava a concertação vitoriosa.
O estilo trator de Sérgio Motta se impôs e, para evitar qualquer ameaça de derrota no Congresso, negociatas, entrega de empresas estatais para o saque de políticos da base do governo e compra direta de votos - por banqueiros e empresários ligadíssimos a FHC - de parlamentares, que iriam decidir no plenário a sorte da emenda, foram os instrumentos de construção da vitória.
Aconteceu. E a quase-esquerda, a social-democracia representada pelo PSDB, que tinha sido fundada para se contrapor ao PMDB quercista, tradicional e patrimonialista, entregou os pontos ainda na sua infância. Inovava apenas no apetite voraz pelo poder e pelo charme de ter como figura exponencial o "príncipe dos sociólogos", um intelectual da academia, respeitado internacionalmente, que a circunstância fez politico.
O recado estava dado. Ao PT emergente, aos pequenos partidos à direita ou à esquerda e aos tradicionais partidos dos redutos continentais da nação (PP, PMDB, PFL - atual DEM). A luta pelo poder envolveria o controle das máquinas do estado, corrupção sistemática e sequer a Constituição deveria ser respeitada como limite para ações. Se a Carta Magna fosse um entrave à manutenção/renovação do poder, modificaria-se o texto constitucional, corrompendo/comprando apoios no parlamento se necessário.
A partir desse instante, o resto é quase
história. O desgaste do PSDB, após dois mandatos, a ascensão do PT, em um sistema político comprometido. Lula eleito em 2002, o PT com uma bancada com menos de 20% de parlamentares, tanto na Câmara, como no Senado. Às dificuldades naturais na busca de apoio, some-se a pouca competência da alta liderança petista que, em lugar de definir uma agenda mínima para o país e buscar alianças dentro e fora do Congresso que forçassem um novo posicionamento do parlamento, achou mais fácil e simples usar o método consagrado por Sérgio Motta/FHC e "comprar" os apoios necessários para garantir a governabilidade no nosso complexo presidencialismo congressional.
Aos trancos e barrancos, sustentados por uma acertada política econômica distributivista (de divisão apenas um pouco menos escrachada da riqueza gerada no país) e de incentivo à industrialização nacional, mas com dificuldades políticas crescentes, dependente quase unicamente do apoio vinculado ao prestigio pessoal de sua grande liderança, o PT "bateu cabeça" nos últimos anos.
Erros graves foram cometidos e juntando-se a eles a ação dura e implacável de seus adversários, que amplificavam os problemas com a ajuda substantiva dos grandes meios de comunicação, chegou-se ao isolamento e definhamento do governo Dilma Rousseff, à farsa do impeachment e à ascensão ao poder do ilegítimo governo Temer.
Na retaguarda do apoio político ao governo do usurpador, ele próprio ex-presidente do partido mais patrimonialista e mais envolvido em casos de corrupção na história republicana, quem se encontra?
Nada mais nada menos que o PSDB e seus aliados de ontem, agora com nova cara, ex-PFL, atual DEM. E alguns penduricalhos inexpressivos, com destaque para o PPS, presidido pelo ex-comunista e manteigueiro-mór da tucanada paulista, Roberto Freire. Os mesmos que inauguraram a bandalheira como base do processo de disputa política, envolvendo políticos, financiadores privados & estado, num único e pecaminoso balaio de interesses. Os mesmos!
A política atual converteu-se num espetáculo deplorável, palco de oportunistas e vigaristas. Em paralelo, o poder policial-judiciário equipado, valorizado e tornado independente pelos governos petistas - uma absoluta novidade no país - ganhou asas próprias realizando operações meritórias de combate à corrupção e, para não desdizer o mote popular, acabou por se lambuzar, tal qual o passarinho que ganha, pela primeira vez, um prato de melado .
Investigando o sistema político corrupto e corrompido, a PF, o MPF, juízos de primeira instância e o STF, se se conduzissem nos marcos constitucionais e legais, teriam dado uma imensa contribuição e, talvez, a possibilidade de superarmos esse momento catártico da vida nacional sem grandes traumas, sem grandes incidentes.
Infelizmente, acho que não teremos uma transição controlada. A confusão está formada. Juizes da suprema corte trocam desaforos, os poderes da República não se entendem, as ações judiciais envolvem grande parte do sistema político.
O que fazer? Não tenho a fórmula. Posso dar algumas sugestões para ajudar o pensamento dos que querem evitar o pior, saídas traumáticas, medidas de força, regressão nos direitos conquistados pela cidadania.
Precisamos isolar os oportunistas.
São muitos, são rápidos. São os mais perigosos.
Precisamos um amplo entendimento a partir de lideranças políticas que não se envolveram na lambança, lideranças dos setores produtivos, do mundo do capital e do trabalho, que possam refletir sobre a gravidade do momento e rascunhem uma saída, que valorize a participação popular e a democracia. Que valorize as instituições da República. As homens passam, as instituições são a garantia da construção do futuro.
Este deve ser o eixo comum, a nos unir. Uma saída que valorize a democracia, que valorize as instituições, o poder executivo, o parlamento e a justiça republicana - impessoal, imparcial, discreta e eficiente.
Uma saída que valorize a maioria da nação, o povo, no seu direito soberano de escolha do futuro.