A cultura da CIA |
SOMOS JECAS EMPRESTADOS
De uns tempos para cá, no Brasil, adotamos mais um dos tantos cacoetes linguísticos copiados (ou mal traduzidos) da língua inglesa.
Antes chamávamos esse procedimento subalterno de macaquice, mas, em favor dos símios, quero poder denominar tal decalque de jequice.
Somos jecas copiando coisas que supomos avançadas, “mudernas” e atualizadas com a tecnologia de nosso tempo.
Vã ilusão.
Vamos ao ponto: a expressão “cultura”, melhor dizendo, o conceito de “cultura”, foi pirateado da antropologia e hoje serve de “pau pra toda a obra”. Outro dia - pasmo de espanto - ouvi um repórter da Globo falar em “cultura do flanelinha” no Rio de Janeiro, referindo-se às pessoas que remuneram os guardadores de carros nas ruas da cidade. Sem esquecer a recentíssima campanha nas redes sociais contra o que foi mal denominado de “cultura do estupro”, que eu prefiro chamar de “barbárie do estupro”.
A humanidade, ao longo do processo civilizatório (que ainda não se completou), experimentou vários holocaustos, ou sacrifícios de povos quase inteiros. Citemos apenas três sacrifícios em massa: os negros escravizados pela dita civilização branca que colonizou as Américas, os autóctones das Américas, igualmente sacrificados quase ao extermínio pelos mesmos brancos europeus, e o holocausto judeu praticado pelo nazifascismo hitleriano na Segunda Guerra.
style="text-align: justify;">Ora, ninguém chama isso de “cultura do holocausto”, mas barbárie do holocausto. Essa é a expressão correta. O antropólogo Clifford Geertz (1926-2006), antes de Sartre (que se apropriou do insight geertziano ou vipassana budista, como vocês quiserem), afirmava que o homem é um animal incompleto e que necessita da “cultura” para se completar. É verdade!
Para finalizar esse breve comentário, quero transcrever um pequeno trecho de um artigo de outro admirável antropólogo contemporâneo, o professor Marshall Sahlins, a propósito da banalização prostituída do conceito de “cultura”.
Diz assim o professor Sahlins: “No mercado anglófono atual, como se sabe, o termo 'cultura' está em liquidação. Ele é usado para categorias e grupos sociais de todo tipo e qualidade. Fala-se de cultura em relação a praticamente qualquer categoria definível (a 'cultura dos adolescentes' etc.), a qualquer tipo de atividade ('cultura do surfe', 'cultura da autobiografia', a 'cultura universitária', a 'cultura da fábrica de charutos'). A palavra substituiu 'ethos' (costumávamos falar no 'ethos universitário' ou no 'ethos dos adeptos da musculação') ou 'psicologia' (como em 'a psicologia de Washington D.C.', ou 'a psicologia da Guerra Fria'). Hoje não é fácil dizer se tudo isso deprecia o conceito antropológico de 'cultura', como poderia parecer, ou se na verdade o fortalece. Contudo, assim como a sociologia tem sobrevivido aos usos populares de 'sociedade', e como a economia tem sobrevivido a todas as evocações leigas de seu tema de estudo, a antropologia provavelmente não precisa ter medo da febre atual da 'cultura'”.
Observem, a nossa jequice (cuja responsabilidade maior é da mídia vulgar e rasteira) nem é original, como se pode deduzir do breve texto de Sahlins, publicado em 1997.
Nossa jequice é de segundo mão: somos jecas de outros jecas, ou jecas emprestados - como vocês quiserem chamar.
[Para finalizar: FORA, TEMER!]