Com a ditadura, sempre
A Folha dá chamada na capa: "Lula perde apoio entre intelectuais de esquerda no país".
Dentro, a reportagem apresenta apenas uma declaração de Maria Rita Kehl - "intelectuais de esquerda no país" é a psicanalista.
Fora isso, há uma referência à entrevista de Noam Chomsky, que é descabida no tempo, no espaço e no objeto. O linguista é intelectual de esquerda, mas não "no país". A matéria tenta demonstrar que a perda de apoio foi motivada pelas acusações dos Odebrecht, mas a entrevista é anterior a elas (Clóvis Rossi é que demorou para descobri-la e desvirtuá-la). E Chomsky não fala em Lula, faz uma crítica genérica ao fato do PT ter entrado no jogo da elite política corrupta. O trecho reproduzido na Folha, aliás, está traduzido errado.
Por fim, é citada a matéria em que o The Intercept Brasil se rende às interpretações da mídia comercial. Acabam aqui os "intelectuais de esquerda" da Folha.
E o que diz Kehl? Vou interpretar com cuidado, porque, afinal, entre o que ela disse e o que a Folha publicou vai uma distância que pode ser bem grande. Está publicado o seguinte:
"Lula foi o melhor presidente que esse país já teve, sem dúvida, e isso não muda", disse a psicanalista Maria Rita Kehl, simpatizante do PT, que então reconheceu: "É claro que é muito decepcionante que ele tenha sido delatado na Lava Jato". Para ela, a frustração é com "a pessoa" do Lula - "ele não era uma pessoa tão bacana e tão íntegra". Mas não com o governante - "não muda que ele tenha feito um governo espetacular", afirmou.
(1) É decepcionante que ele tenha sido "delatado"? Isso significa aceitar as delações como fragmentos incontestáveis da realidade. É claro que Lula seria delatado. A Lava Jato tem como um de seus objetivos condená-lo e só não vê isso quem não quer. Os próprios Odebrecht foram adaptando seus depoimentos, durante longo tempo, até chegar ao ponto que satisfez Moro, Dallagnol e Bonner.
(2) Não vou discutir as qualidades e defeitos do governo Lula, que Kehl avalia tão unilateralmente como "espetacular". Mas ela acha mesmo que um governante preocupado em ser "tão bacana e tão íntegro" conseguiria governar?
A Folha simplifica e generaliza de forma desonesta, como de costume. Mas as declarações de Kehl são reveladoras, sim, de algo que está presente em algumas reações à esquerda - e que a direita usa de caso pensado, inclusive no timing da divulgação dessas delações, que impacta de forma muito negativa a mobilização contra as reformas destrutivas de Temer e a organização da greve geral programada para o próximo dia 28. É uma tripla ingenuidade política. A ingenuidade que faz aceitar ao pé da letra o que é produto dos aparelhos repressivos e da imprensa. A ingenuidade de projetar nos líderes uma pureza que não tem como se sustentar. E a ingenuidade que faz avaliar a política por critérios morais que não lhe são próprios.
Lula não é imune a críticas, claro, mas as críticas relevantes são aquelas com conteúdo político.
Lula tampouco é imune a processos judiciais, mas teria que ser tratado com isenção, o que está muito longe de ser o caso. E, por fim, é preciso ter claro que, a despeito de todo o circo do judiciário e da mídia, o Lula que incomoda não é aquele que acomodava a elite política podre no seu governo ou arranjava negócios para a Odebrecht no exterior. É aquele que mantém apoio popular e está contra os retrocessos nos direitos e nas liberdades. É esse que eles querem destruir. Colaborar com essa destruição é agir contra a nossa resistência.