Dallagnol, um pequeno Torquemada


Nos processos em que a perseguição insidiosa toma o lugar da justiça, faz-se  necessário contar uma história que desperte a intolerância e justifique a violência e o arbítrio. Assim fez o procurador Deltan Dallagnol no espetáculo deplorável de apresentação de denúncia do Ministério Público contra o ex-presidente Lula. A denúncia é de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, relacionada à suposta posse, não provada, de um apartamento. Mas a história contada, com um histrionismo que envergonhou os caçadores mais adestrados de Lula, foi sobre seu papel de “comandante máximo”, “maestro regente” ou “general” de uma “propinocracia” montada para saquear a Petrobrás. Dallagnol fez uma interpretação política, não uma demonstração jurídica. Pode ter dado seu tiro no pé.  “A hipótese prévia imaginária preponderou em relação aos fatos. Parece-me que a acusação num processo jurídico normal não prosperaria”, avaliou o jurista Pedro Serrano.

O que ainda resta de consciência jurídica no país vai se pronunciar. Um agente da lei fez uma grave acusação: “Lula era o maestro dessa grande orquestra concatenada para saquear os cofres públicos", afirmou Dallagnol, aspergindo certeza.  E o fez sem que o acusado tenha se defendido desta acusação,  que nem consta da denúncia apresentada,  e sem que tenha sido condenado por crimes que permitiram  tal conclusão. O massacre fugiu completamente à obrigação de preservar a figura do réu antes do julgamento. Por isso a defesa de Lula falou em “violação das garantias da dignidade da pessoa humana, da presunção da inocência e, ainda, das regras de Comunicação Social do CNMP”, que não recomendam espetáculos denunciatórios como o de ontem.

Em seu palanque midiático, o procurador gastou o verbo e o tempo contando sua história sobre o papel de Lula como chefe do petrolão, acusação, vale repetir, que não consta da denúncia. O que ele externou foi uma percepção politicamente motivada, uma “hipótese prévia”, como diz Serrano.  Mas lendas e histórias  calam no imaginário, quando bem contadas, despertando iras ou paixões. Tentando bem contar a sua,  Dallagnol recorreu a um esquema gráfico vistoso mas quase infantil,   com o nome de Lula num círculo central, ligado por setas a outros círculos contendo palavras vazias de real sentido: governabilidade corrompida, mensalão, poder de decisão, expressividade,  pessoas próximas na Lava Jato e por aí vai. Seus excessos causaram vergonha alheia e devem ter preocupado Rodrigo Janot e Sergio Moro.

Inebriado pelo som da própria voz, com a visão ofuscada pela miragem da fogueira que julga estar erigindo para Lula, Dallagnol ultrapassou todos os limites da compostura que se espera de agentes da lei.  Ali estava um pequeno Torquemada insuflando a intolerância. “Se observar que os seus vizinhos vestem roupas limpas e coloridas no sábado, eles são judeus.  Se eles limpam as suas casas às sextas-feiras e acendem velas mais cedo do que o normal naquela noite, eles são judeus”, dizia o acendedor de fogueiras na Espanha do século XV.  Em sua narrativa, Dallagnol procurou induzir a conclusões também simplistas: se Lula era o presidente, se ele era o elo entre o PT e o governo, se ele tinha relações com pessoas que estão sendo investigadas pela Lava Jato,  se ele garantiu a governabilidade com o apoio de partidos que têm pessoas envolvidas,  só ele poderia ser o “comandante máximo” da corrupção na Petrobrás, destinada a garantir a governabilidade, a perpetuação no poder e o enriquecimento pessoal. 

A história que Dallagnol contou ontem, num dia “nobre” em que tomou do colega Carlos Fernando o papel de porta-voz da Lava Jato, começou a ser escrita em agosto do ano passado, quando escrevi aqui no 247 o artigo “Lava Jato muda narrativa para chegar a Lula”. Até então a operação falava de um cartel de empresas que atuava na Petrobrás em conluio com diretores corruptos que molhavam a mão dos partidos que os indicavam. Ricardo Pessoa, da UTC, foi repetidamente apontado como líder do cartel. Eis que em agosto do ano passado, pela voz de Carlos Fernando, a Lava Jato mudou a história.  Comparando o esquema com o mensalão, ele disse:  “O DNA é o mesmo, compra de apoio partidário”.  E acrescentou misterioso: “Chegamos a um dos líderes principais, que instituiu o esquema, permitiu que ele existisse e se beneficiou dele”. Dallagnol agora deu nome ao personagem: É Lula.

Mas como não são bobos nem nada, na denúncia os procuradores não acusaram Lula de “general” do esquema, o que enfraqueceria a pela pela ausência completa de elementos sólidos.  Já Lula, na lenda, deve ser o bobo.  Tendo comandando todo um esquema em que Pedro Barusco amealhou R$ 100 milhões,  Eduardo Cunha R$ 52 milhões só com um contrato, Lula  contentou-se com um apartamento e umas obrinhas num sítio. Se enriqueceu, cadê a conta na Suiça? Cadê a offshore para ocultar a dinheirama?

Torquemada contava suas histórias sobre judeus aos espanhóis.  Para arrancar da coroa o édito de expulsão de todos eles,  em 1490 fez um “julgamento espetacular” de oito judeus em praça pública, acusando-os de crucificar crianças cristâs.  Ódio espalhado,  os reis católicos o atenderam.  O nazismo também contava uma história: os judeus sugam e sujam a Alemanha dos arianos. . O maccarthismo tinha a sua: os comunistas que comem criancinhas praticam atividades antiamericanas e precisam ser denunciados. Todas as ditaduras contaram uma história. A dos militares no Brasil era sobre subversivos e comunistas que ameaçavam a “segurança nacional” .  A de Dallagnol é sobre um partido, o PT,  que sob o comando de um presidente eleito e reeleito pelo povo, que colheu uma popularidade inédita pelas transformações que propiciou, na verdade era o general de uma “propinocracia”, um regime à base de propinas, que montou para se  perpetuar no poder, garantir a governabilidade e enriquecer seus integrantes. Fogueira para eles.

Novamente Lula é bobo nesta história. Se podia se perpetuar no poder, se comprava apoio e governabilidade, por que não fez como Fernando Henrique e aprovou uma emenda que lhe permitisse disputar e conseguir uma nova reeleição?

Mas não estamos na Idade Média, nem na Guerra Fria e não ainda numa ditadura plena.   O Judiciário, cujo comando maior foi assumido esta semana por uma mulher que prometeu eficiência jurisdicional , “asseguradas as garantias do devido processo legal e com respeito aos princípios constitucionais”, deve se colocar acima da paixão vertiginosa com que o procurador atirou-se ontem ao trucidamento moral de Lula. A opinião pública, apesar da visibilidade que a mídia deu ao show, não é desprovida de discernimento. O Brasil vive uma tragédia, que o ameaça de voltar a ser um mero país periférico produtor de matérias-primas mas ainda não perdeu a inteligência.  

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